ERVA E DÁLIAS NA LATRINA, CAPÍTULO V, PALAVRAS 11935-12229

H. adormecera no sofá. O Sr. Jones ressonava na cama. Havia vómito junto à mesa de cabeceira e tinha, na boca adormecida, os sons das betoneiras. A Sra. Jones chorava na cozinha. Gelava sobre os ladrilhos do chão. Na mão, agarrava uma nota manuscrita, uma nota de há muitos anos; uma nota de amor. Era um amor que tinha deixado fugir porque bem-vinda ao mundo real, Francesca! acorda! acorda, filha! um poeta, filha? um poeta? queres morrer à fome, filha? feliz? feliz? quando te faltar um tecto… queres viver ao relento, filha? morrer à fome, filha? sim? juízo… ainda tens tanto para…

O título caligrafado era kitsch e honesto: amo-te, Francesca

Era assim todos os dias

quando o último fio de sol

se enovelava e ía encontrar-te

as ruínas do sorriso,

as unhas desbotadas,

os braços ponteados,

a tez azulada pela luz

onde as moscas vão

para morrer.

Sei onde vais depois

de perscrutares

os gargalos secos

da garrafa que aconchegas

no regaço.

E sorris com os lábios cortados,

as lascas soltas dos dentes soltos,

e sorris, ainda assim,

sorris, assim, ainda.

Terás esse desacordo

informado, firmado

com a vida? Quero levar-te ao fechar do turno,

beijar-te a boca estragada,

abraçar-te os braços

ser-te o garrote desta noite.

Deitar-te num tapete de pó

e ver-te desabrochar as pernas cansadas,

que abrirás só para mim.

Quero correr a grande grade da loja

e ver a tua sombra esguia

nos panfletos, sobre as promoções,

sobre mim e sobre os preços.

Quero perguntar-te

como é sorrir no incêndio,

arder e ser a chacota

da vida?

Acordo deste torpor aflito

com o tilintar

da máquina registadora.

Acordo e tu perguntas,

sempre sorrindo,

como quem pergunta à vida

E se, de repente,

num banho de querosene e gasolina,

ateasse fogo

a tudo o que vês?

Previous
Previous

ERVA E DÁLIAS NA LATRINA, CAPÍTULO V, PALAVRAS 10692-11935

Next
Next

ERVA E DÁLIAS NA LATRINA, CAPÍTULO VI, PALAVRAS 12230-12848