ERVA E DÁLIAS NA LATRINA, CAPÍTULO VI, PALAVRAS 12230-12848
Hoje, tomamos o navio, velho! Hoje abordamos a cabine e algemamos o leme ao piloto! Sim, velho! O leme ao piloto. E que rodopie o leme e que torne e torne, em vertigem horária, o navio até que se lancem os estômagos todos borda fora. E agarramos no mestre e dizemos-lhe que deixe de ser corno. Gritamos-lhe que se faça comandante antes que o comandante se faça também oficial no meio das pernas da mulher do pobre mestre! Que solitária, a vida de mulher de mestre. Hoje, meu velho, tomamos a mulher do mestre e depois tomamos-lhe a embarcação, penetrando-a pela secção do convés, velho! E apanhamos as calças do patife do comandante e ele que se apresente sem elas à emboscada e havemos de lhe ver as ceroulas a cobrir a tímida obra, velho amigo. Serayva não perdia a expressão de um severo retrato. O esmalte dos dentes permanecia resguardado pelos lábios rasgados, intumescidos, enegrecidos e ponteados de petéquias. Eram lábios dilacerados, disformes, serrados à força de punhos, desfeitos por uma grande vontade que é o ímpeto do jogo de sangue. E, no entanto, os copos perdiam-se-lhe na mais fina prestidigitação das mãos de três palmos e dois quintos. O vinho perdia-se-lhe na boca que tinha uma medida real. Perdia-se-lhe na boca como um riacho se mingua à avidez de agosto. O vinho subia-lhe a língua e escoava-se nas paredes das escarpas de esmalte. Serayva era um degustador de quinta-essência. O vinho ia-se-lhe escorrer pelos lábios sem lhes ouvir estalido ou réstia de estridor. Como era delicioso vê-lo a saborear o vinho… vinho de bota, vinho de garrafa, vinho de copo perdido nas mãos. E, depois do canteiro linguado, já no poço da garganta, não se entendia o mais leve estalido de um gorgolejo. Era o mesmo a rasgar, fibra ante fibra, o músculo das carnes, a conter a explosão salgada dos moluscos, as vísceras inconclusivas dos lagostins, os espirros das tangerinas túrgidas.
Naquela noite, Serayva vencera um combate. Não fora um grande combate e o público só se animara num par de curtas ocasiões em que os golpes foram anzóis, arrastando os olhares pelas guelras.
Noites como aquela pediam deambulação. H. não continha o entusiasmo. Trazia duas garrafas de vinho nas mãos. Estavam abertas e experimentadas e o vinho era tinto e sanguíneo. O corpo da garrafa perdia-se nas mãos de Serayva que, à insistência pueril de H., ía bebendo dos dois gargalos. Entraram numa casa de fachada lúgubre porque, da porta rachada, se ouvia o mesmo trompete que animara a dança das ossadas de Jose Guadalupe Posada. Atravessaram a entrada à tangência do balcão. As moscas da noite estalavam na luz violeta e o calor nascia do suspiro das paredes. Atravessaram o arco de tijolo burro. Atravessaram a antecâmara labiríntica onde a luz se quedava perdida. Atravessaram a frescura gutural por onde serpenteava um aqueduto reformado. Através das muradas, sentia-se o orvalho, filho do calor e das pedras da parede, e os ecos do trompete. Atravessaram o calor refrescado nas paredes em pedra e os ecos do trompete. Deixaram-se atravessar pela humidade soprada pelo trompete e ouviram, gota-a-gota, a transpiração das paredes onde o calor da rua penetrava na frescura das pedras. A dobra da curva servia gente e vozes de gente, bandejas metálicas sobre as paredes e um contrabaixo, o arnês harmónico do trompete, falava sobre mosto de milho e campos de algodão na Carolina do Sul. Os olhos de H. habituavam-se aos alfinetes de luz que lhe perfuravam a pupila, nidificando no vácuo negro que se comprimia à penetração de todas as cores. Os olhos de Serayva estavam irremediavelmente abertos. Nos dias de combate, os olhos sabem-no, impõe-se-lhes um jejum de escuridão.