Erva e dálias na latrina, capítulo IV, palavras 8145-9157
Então soou a sineta e os olhos puseram-se, sem a electricidade da pressa de perder pitada, nos homens do ringue. O combate era nada mais do que entediante. Serayva tinha este condão insuperável de inquinar o interesse daquele jogo. Ali, naquele corpo emagrecido por uma improvável sucessão de más fortunas, não morava ninguém. O inquilino deixava-o ao início do combate mas antes recheava-o de pedras amaciadas pelo tempo e de sementes de trigo. Era um corpo vazio, de braços em guarda, de punhos defronte dos olhos desocupados. O ventre, as costelas flutuantes e os flancos eram, por ardil, oferecidos ao oponente. J. Ranmbra mantinha a tenacidade ao sexto assalto. Mas os golpes eram contidos pela camada amorfa de carne dura e nervo que se enrijecia a cada investida. O corpo de J. Ranmbra estava longe de se esgotar. Acontece que os olhos de Serayva continham o desalento vazio de um maço de cigarros sem cigarros. Não se pode olhar para uns olhos assim pretendendo, na mesma leva, manter o equilíbrio. Insondável, Serayva sintonizava um sinal vindo de longe, ouvia Baldwin a relembrar que, não há muito, ele valeria três quintos de um branco, de acordo com as fracções da Constituição. Três quintos, pensava, seis na casa das décimas e zero, só zero, nas unidades. Isto entre outros automatismos. O de exalar a dor pontual aos golpes nas costelas, nos rins e na grande curvatura do estômago vazio. O de subir a guarda que também caía, como caem todos os graves. O de encontrar a combinação certa para os ingredientes que tinha no armário: concentrado de tomate em lata, arenque esbichado em sal e vinagre, não mais de quatro rabanetes cujos bolbos magenta pareciam prontos a cair sobre Nagasaki. Claras de ovos de um pássaro qualquer e as gemas também. Sim, havia um talo de aipo, geleia de arando, água carbonatada, água sem gás e água da rede pública de águas, água da chuva e água do chuveiro, água do depósito do autoclismo, água debaixo de um enorme vaso de dálias frondosas que roubara murchas das latrinas de uma escola do estado. J. Ranmbra vertia-lhe golpes torrenciais, todos nos flancos e nas fibras oblíquas externas mas tinha os olhos em parelha com os olhos de Serayva. O velho protegia a cabeça, os olhos e as orelhas com a muralha de punhos, de antebraços e braços e o próprio dorso crescia-se para cima, adensando-se a cada golpe de J. Ranmbra. O velho tinha os pés plantados no ringue. Os pés de J. Ranmbra eram alados e nunca tocavam no piso porque transpiravam o éter da juventude e os braços não reconheciam soberania ao atrito do ar e choviam-se em torrente intensa, em crescendo, acima e acima. Vamos, velho encorajava Serayva vamos, só mais uma leva e ele esgota-se. O rapaz oferece-se em golpes verdadeiramente fortes e verdadeiramente bravos mas há uma não menos verdadeira perda de tenacidade. Vamos, velho. Aguenta, velho. Mas as palavras eram só um tónico e as costelas de Serayva cediam como portas insalubres de um casebre, arrombadas amiúde pelas botas de aço de uma força policial. Aguenta, velho, só mais uns instantes, restam-lhe apenas instantes desta força que lhe vem ainda do leite. Mas sentia o baço a rebentar e o estômago contorcia-se e o ácido coalhava-se-lhe na garganta aos golpes em rajada. Os braços queriam descer e amparar alguns dos golpes. Só se mantinham em guarda alta por força do espírito que se ía abalando. Os sucos gástricos acumulavam-se nas grutas e interstícios cavernosos da boca de Serayva. A língua grudava-se ao impacto. O velho engolia o vómito que, contudo, voltava a ascender em rajadas. Tens os olhos marejados, velho, mas lembra-te do amoníaco lixiviado das latrinas, da merda nas latrinas, do mijo quente, do mijo de cerveja, do mijo do café, do mijo nervoso e gotejante, do mijo velho aos salpicos, do mijo ébrio e pensativo e reconciliador com o presente, do mijo menstruado, do mijo pós-orgasmo, do mijo ardente na uretra, do mijo com pedrinhas saltitantes, do mijo dependente, da merda dependente que não sai, dias a fio, do cheiro a erva que se fumava nas latrinas e das dálias que lá cresciam. Só as dálias assim te marejavam os olhos, velho. Só mais um instante, guarda as forças. Sim, guarda-as aí. Agora. Agora! Vou iniciar o combate, agora. Três, dois, golpe, três, dois, golpe, golpe. Sim, a cadência do miúdo já se fez certa. O miúdo desconcentrou-se e agora é um metrónomo de ganchos e jabs, três, dois, golpe, três, dois, golpe, sim. Agora. Três, dois SERAYVA REPLICA! EM CHEIO! - três, dois - SIM! SERAYVA, SIM! - três, dois - orelhas e têmporas e o miúdo perde-se em frustração, o miúdo compreende que não pode vencer, três, dois - BLOQUEIO! J. RANMBRA REPLICA, CERTEIRO! - o miúdo é valente e espertíssimo e tenaz como um predador mas está cansado. Mas quem está mais cansado, velho? Tu ou o rapaz? Tu ou o rapaz? Tu descansaste até agora mas descansaste verdadeiramente? Já não acomodas os golpes com o mesmo encaixe e já foram tantos golpes em tantos anos que foram poucos anos. Agora, velho. Quatro, três, dois, golpe, um, golpe, golpe. Quatro, três, o miúdo adormeceu, golpe, um, golpe, golpe, réplica SERAYVA REPLICA, quatro, três, contragolpe SERAYVA OUTRA VEZ, GOLPE PESADO, PESADÍSSIMO SOBRE O MIÚDO, J. RANMBRA NO CHÃO, levanta-te miúdo, tens sido bravo e eu estou velho. Anda miúdo, acorda. Levanta-te miúdo. Isso, de pé. De pé, miúdo. O RAPAZ REGRESSA E DISPARA SOBRE SERAYVA, quatro, três, golpe, não, sem golpe, o miúdo acordou, por fim. Dois, um, golpe, golpe, golpe, galope, galope, a galope, velho, a galope, hoje, pousa as mãos sobre as mãos dela quando as mãos dela se pousarem sobre a mesa, as longas mãos dela sobre a mesa e o pão intacto e a frescura da salada e o cardápio entre nós e daqueles pauzinhos tostados e os talheres dela virados para os meus talheres quando os olhos dela se pousam também nos meus olhos, ainda que só as vezes e por pouco tempo J. RANMBRA FURA A MURALHA, A MURALHA CAI COM ESTRONDO, levanta-te velho, levanta-te, anda! KO AO DÉCIMO ASSALTO, VENCE O MIÚDO, DECOREM ESTE NOME, DECOREM O NOME DO MIÚDO! J. RANMBRA! J. RANMBRA!