erva e dálias na latrina, capítulo iv, palavras 7527-8144
Fazia-se cedo e a plateia era um assombroso eco perdido no quase nada. Quase nada que não um ringue de cordas laxas e, na plateia, as cadeiras estofadas a veludo escarlate. Era um vermelho rosado muito antigo e a berma dos assentos, contava-o a meia-luz tremeluzente, estava vincada, dissolvida e coçada de velhas emoções, isqueiros nos bolsos traseiros, unhas mal aparadas e flores da pele. O cheiro, claro, era doce. A decrepitude cheira a ananases mortos, a furfural, a amêndoas doces e a marijuana.
H. chegava, por hábito, por ritual, muito antes dos guarda-chuvas, dos casacos sobre os ombros, da manifesta euforia dos pequenos e do júbilo furtivo dos adultos, muito antes do primeiro algodão-doce e dos balões a rebentar de hélio e do teste da sineta e do teste às cordas e da inspecção do piso e da bófia armada, das buzinas frenéticas e do primeiro velho de auto-rádio em riste, que relata um combate enquanto este se passa ali mesmo. O combate não era interessante. O já veterano Serayva sucumbiria decerto, aos primeiros assaltos, à juventude do irascível J. Ranmbra. O tempo anorexiara Serayva, que descera dois escalões de peso o que era um péssimo presságio porque o seu estilo lento, parcimonioso, pachorrento, sólido, paciente encontrava a verdadeira fraqueza na agilidade volátil dos pesos leves. Mas Serayva entrara no ringue àquela hora e corria as arestas do ringue como se desenhasse, com os pés chatos, as linhas-limite do quadrado. Cada passada era o peso inteiro do seu corpo. Depois começou a projectar golpes, esquerda, direita, muito rectos. Eram golpes honestíssimos; o pugilismo é um jogo que faz dançar a verdade. Eram golpes aéreos e projectavam-se sobre um adversário incorpóreo, sobre um ar que se rasgava face à lâmina romba dos punhos de Serayva. Eram golpes veementes, golpes corajosos e Serayva era um homem pleno de inconsciência leve, mais do que de coragem. Cada golpe era uma cerimónia, um pede licença aos músculos que se contraíam à vez, uma delicadeza sem mácula, sem mentira e de categórica lentidão. Este gajo devia retirar-se, pensou H. Este gajo nunca devia ter sido isto. Aliás, devia ter sido tudo menos isto. Exactamente tudo, menos isto. Este gajo não tem estilo nem beleza nem destreza e, se alguma vez os teve, esqueceu-os. Mas tem, em cada golpe, uma verdade de sal cristalizado, singularmente pura, inútil e incapaz. Incapaz e torpe como os pés de Serayva que pareciam ficar mais achatados a cada passada. Que teimosia brilhante, cogitava H, brilhante e magnética. Havia uma voz nos punhos de Serayva.
A sala ganhava corpo. Adensavam-se os sons ainda agrilhoados às gargantas, às bocas semi-cerradas entre dentes. Dois fotógrafos vestidos de bombazina aproximavam-se do ringue. Ao primeiro flash, Serayva atravessou as cordas e esboroou-se entre as pessoas, num truque fantástico debalde inútil para quem é tão pouco, apesar das suas costas em tábua e das mandíbulas capazes de fender aço. As cascas de amendoim traçavam caminhos enigmáticos pelo chão e já tresandava a cerveja calcada. À coagulação dos corpos que iam, gradualmente, preenchendo os espaços, ocupando as cadeiras vagas, H. afastou-se do ringue. O bar abrira, finalmente. Na fila havia um louco. Pelo menos um louco. Salivava-se em solilóquios Quero casar contigo amanhã, sim, amanhã, amor, amanhã e não me fales de depois. E amanhã já é tarde, amor, tão tarde amanhã, imagina depois. Três, dois, escuto. Alfa, Mike, Oscar, Romeo, fim, fim. Há quase sempre um louco, pelo menos um, nas filas para todo o lado. Uma cerveja e uma quesadilla.