Erva e dálias na latrina, capítulo IV, palavras 9158-9904

Serayva voltou a si em menos de quase nada. Voltou a si com a mesma cara passiva de temor, com a expressão de um gato sem ego. Os gatos também caem e quando se levantam, esquecem-se de pensar na queda. Limpou-se a uma toalha atirada por Vern Blaine, o seu treinador e gestor de carreira. Blaine assistira ao combate com o mesmo entusiasmo do público. Do público que aparecera apenas porque era domingo à tarde e haviam de ter a família em casa e o primo do interior profundo a falar com a boca cheia de terra e o primo cosmopolita a olhar para aquilo tudo, tremendo entre sedas por uma linha de coca na latrina e a cerzir um sorriso de ironia enquanto concorda com as ideias pacóvias do outro. As famílias também são todas iguais. Passamos a vida a fugir às nossas famílias e dedicamos os dias a criar uma para nós e esta acaba por ser precisamente igual às outras, mais coisa, menos coisa. Depois há os eunucos, sem família, sem tomates. Os piores são os que adoptam a família do marido ou da mulher e a elevam à sua própria família. Se houve uma cona que te pariu, agradece-lhe. Se a tua mãe foi à charcutaria para que a abrissem bem aberta, às mãos de um açougueiro diplomado, porque a tua cabeça disforme, enorme, não lhe cabia rata abaixo ou porque não soubeste dormir e acordar da primeira cama, agradece. E, já agora, agradeces ao fuso cuspidor que por lá se imiscuiu. Obrigado, mãe, obrigado, pai. Agora vou ver o combate. Boa sorte com o primo T. que tem estado a enfiar as pratas nas mangas e os bibelôs nos bolsos para os vender nas penhoras. E com a tia A. que torra tudo com o amante. Não culpem o miúdo, ele faz o que pode. Agora vou ver o velho Serayva a sucumbir aos pés do jovem J. Ranmbra. E quando cair, hei de ver o olhar distraído do Vern Blaine e os seus largos óculos de massa e os dois botões de punho dourados. Talvez o ouça dizer, sem que ele o diga, que vai desistir de Serayva, porque ele vai desistir de Serayva. Há muito que o velho não ganha combates suficientes para cobrir o valor do seguro, come mal e vive num covil de amianto. Tudo para sustentar a mulher de casa e a mulher de fora. Quero dizer, a mulher que gosta dele e a mulher que ele, enfim, ama sem medida. Vern Blaine é um homem desonesto, tem a voz aguda, os olhos agudos. Mas tem instintos e alguma vocação para entender os desígnios do dinheiro. Como atleta, uma miséria. Devia as poucas vitórias sobre o ringue à incapacidade nativa de se condoer. Isto umas. Outras, à vontade de triunfo por vias travessas, aos resultados combinados e a artimanhas infames e dissimuladas. Vern Blaine atirou uma toalha a Serayva, deitou-lhe os braços sobre os ombros e levou-o à câmara de gás. Morte aos velhos, demasiado velhos. Morte aos Serayvas, demasiado velhos. Morte aos novos, muito novos, muito tenros. Vivam os aptos por ocasião, os J. Ranmbras. A selva dá-lhes, por hoje, uma trégua e a vida quase parecerá justa. Amanhã serão velhos. Morte aos velhos.

H. J. Jones flanqueou Serayva, à saída do pavilhão municipal. É que, sem motivo que se pudesse apontar, depois dos anos de queimadura insuportável que o assomaram como um plúmbeo sol contínuo, H. encontrara em Serayva esse tal propósito para dar continuidade à sua vida. Eu vou salvar-te, velho. Propósito ou engano, H. sentia-se outra vez enérgico, desafogado do peso do corpo. Levantava-se às seis e engolia dois cigarros com o café. Corria seis quilómetros até à piscina municipal e nadava quatrocentos metros ao estilo da Diana Nyad. Secava-se lentamente e ficava a apreciar as nadadoras vindas do balneário que ajustavam os fatos de banho ao corpo e continham os cabelos dentro das toucas de látex. As gotas frias do chuveiro retesavam-lhes os mamilos. H. corria de volta para casa e masturbava-se. Fumava dois cigarros, bebia café e lia o jornal. E às vezes voltava a masturbar-se. Depois vestia-se e ia ver Serayva que treinava àquela hora a sete quarteirões. Temos um [combate] em casa, outro fora, o que achas? O que quiseres, meu… Os dois? Sim, meu, eu aguento os dois. Eu sei, velho, eu sei. Toma. Sentavam-se ao lado do ringue e bebiam cerveja e fumavam cigarros. Eu vou salvar-te desta vida, velho.

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