erva e dálias na latrina - capítulo iii, palavras 5217-5683
Há coisa de oito anos, Carlos Alfredo da Cruz Serayva esfregava latrinas à primeira hora do dia de todos os dias e aos fins de tarde das segundas e sextas-feiras. Não era o leque de cheiros a merda nem os vários tons de amarelo dos mijos desgovernados; não era o sangue das menstruações acumulado sob o tampo das sanitas nem os despojos de fodas rápidas dentro das cabines. Nada disso chegava para perturbar as vozes mudas da cabeça de Serayva. Eram as conversas de casa de banho que lhe bramiam uma fina corda qualquer na espinha dorsal, que lhe davam uma comichão insuportável no palato, que o faziam sentir-se negro mesmo quando, por força do senso comum e da inteligência normal, já se esquecera de que era negro, restando apenas a plena e sincera sensação de que era Homem, tanto como os outros. Tanto como as outras.
O que diabo se passa com o homem branco?
Isto é só um exemplo mas num fim de tarde gelado, antevéspera de Natal, dois tipos foram verter umas águas num pub bem frequentado, na zona mais baixa e chique da cidade. Só lá iam gajos como aqueles, de gravata com riscas diagonais sobre azul marinho ou temas de caça, calças de sarja, sapatos de Oxford, sobrecasacas longas e botões dourados, lapelas em flecha, cabelos impecáveis, cabelos de dez ou mais notas pretas, rostos impecavelmente limpos, unhas impecavelmente brilhantes e aparadas, dedos compridos e imaculados e puramente lívidos como a primeira neve branda que se vai suster, sem sequer tocar, sobre a outra camada que caíra na tempestade incivilizada, conspurcada pela sujidade dos dias plebeus. Aqueles dois tipos foram mijar lado-a-lado mas deixaram um urinol de intervalo. Serayva compreendia o urinol de intervalo - ele também não queria que um tipo qualquer se pusesse a admirar-lhe a pila enquanto mijava, nem que fosse de relance ou por acidente. Não há nada de sagrado na pila de um homem, pensava, é, aliás, repugnante, sem beleza, sem valor estético e, ainda assim, há edifícios, carros, bolos em forma de pila. Enfim, os dois tipos começaram a mijar, um deles a fingir que usava as duas mãos para manusear o material e o outro, já com duas ou três cervejas fermentando-lhe no rúmen, a apoiar o antebraço na parede e a fazer pontaria a duas bolas de naftalina perfumada que Serayva acabara de colocar no urinol. Ambos urinavam longamente, suspirando de um alívio só parcialmente verdadeiro. Vinham a conversar acerca da bolsa e dos mercados e de relógios e das coisas inacreditáveis que lhes aconteciam no escritório, invariavelmente fora de horas, àquelas em que o expediente já se não distinguia do fartote e em que a cocaína mais fresca, mais pura, ía sendo alinhada sobre os tampos de vidro.
O que diabo se passa com o homem branco?