ERVA E DÁLIAS NA LATRINA - CAPÍTULO II (PALAVRAS 4528 - 5216)
- ENTRETANTO, O TEMPO É UMA CAMADA DE PELE SOBRE A FERIDA PURULENTA. O CINISMO, UMA MÁQUINA DE TERRAPLANAGEM. TUDO ESTÁ BEM QUANDO É SUBMETIDO AO ROLO COMPRESSOR. TEMPO. TEMPO. RAZÃO. RAZÃO. RENASCER. -
Uma crença, o suicídio ou a aceitação. Uma corda forte, tem? H. ensaiava um nó de forca com uma linha de lã que arrancara a uma camisola que alguém lhe tricotara para o natal. Uma curva, duas curvas e depois uma volta, duas voltas, três, quatro… já só sobra uma ansa por onde entra a última ponta do cordel. H. puxava o laço com o indicador. Ao pensamento, assomaram-no palavras frias: fractura cervical. Dali a trinta metros havia uma farmácia. Diazepam. Isso não posso, tenha paciência. Uma caixa basta. Não, não. Ouça, eu não durmo há mais de duas semanas… Não podemos, já disse! Tenha paciência. Ok; eu vou a outra farmácia; sabe que vou acabar por conseguir… e, afinal de contas, não tinha nada com que se preocupar!, só quero dormir! Vá a um médico, explique-lhe o seu problema, as suas insónias; ele tratará de lhe prescrever… Não! eu não aguento nem mais uma noite sem dormir! H. batia com os punhos no balcão envidraçado. A farmacêutica estava sozinha e aquele problema desapareceria facilmente. Dois passos, gaveta F, terceira fila, Diazepam 5 mg. Afinal o homem só precisa de dormir. Será só para dormir; e se não for? que culpa tenho eu? afinal, para o resto, ele poderá usar qualquer outra coisa, até lixívia ou um herbicida, ou… que ideia, a minha! o homem só quer dormir! Aqui tem - um comprimido ao deitar; um apenas, ouviu? entende o que lhe estou a dizer? Fico-lhe muito grato. Muito grato. Duas medidas de gin, só gin. obrigado. outras duas, sim, continua a ser só gin. Amigo, temo que… últimas duas, amigo. H. dispôs três notas no balcão. Ok. mas é mesmo o último. Sim, sim… mais uma nota no balcão. Já disse que não. Anda lá, caralho; está aí o dinheiro. Vai para casa, pá. Filho da puta, tens aí o dinheiro, a tua obrigação… H. vociferava e o barman deu a volta ao balcão e agarrou-o pela camisola de lã. Rua. Rua o caralho, corno de merda! Um golpe na face. O empregado enfureceu-se e agarrou-o pela nuca, como se agarram os gatos. Depois tomou-lhe um punhado de cabelo e imobilizou-o. H. tinha terra na boca e as mãos em ferida, queimadas pelo alcatrão da estrada. Atrás, o barman flanqueava a porta de entrada, cuspindo para o chão poeirento. Põe-te a andar, vai-te foder para outro lado! Sim, já vou, já vou, pensava H. E o pensamento passeava-se entre o sangue misturado com terra e as soluções para o absurdo. Levantou-se e cambaleou até casa. Foda-se, pois se deus se fodeu…, restam-me a aceitação e o suicídio; a aceitação e o suicídio; o que há dentro da aceitação? aceitação do absurdo e o absurdo da aceitação… DEUS, O QUE HÁ DENTRO DA ACEITAÇÃO?! MÃE, O QUE HÁ?
H. gritava a caminho de casa e dispunham-se fragmentos de miséria em toda a parte. Espera, espera mais um pouco. Comprimidos sobre o almofariz, pilão sobre os comprimidos, comprimidos em pó, pó e duas medidas de gin, corda, nó, fractura cervical, cadeira, goela abaixo, goela abaixo, goela abaixo. Na televisão, um advogado industrioso vestido à veraneante vendia os seus préstimos: valorize o seu negócio! Triplique o seu valor em três passos simples! Diga comigo - o pano de fundo abria-se numa paisagem de palmeiras, areia branca e cocos; um ukulele tocava uma música quente, animada e genérica - juntos, vamos trazê-lo cá para fora. Atrás do advogado (agora vestindo um dashiki multicolor) feixes de luz divina atravessaram o ecrã e depois irromperam em todas as direcções, girando sobre o corpo prostrado de H. Cá para fora! Cá para fora! Cá para fora! O advogado divino piscava o olho e abria os braços messiânicos. Cá para fora, amigo! Tudo cá para fora!
Há histórias que só começam no segundo capítulo dizia Tânatos à sua foice.
Uma polpa de vómito rebrilhava às cores dos anúncios da TV.