ERVA E DÁLIAS NA LATRINA - CAPÍTULO II (PALAVRAS 3108 - 4527)
À saída, num automatismo assumido quando chegara àquela cidade, acendeu um cigarro Blue Cherry e atravessou dois quarteirões sem pensar em absolutamente nada. Iria trabalhar no dia seguinte. Já correra todos os trabalhos daquela cidade e todos se lhe tornaram insuportáveis ao fim de duas ou três semanas. Naquela altura, despachava lotes de peixe fresco nas docas. Sentia-se quase tranquilo quando se pesavam os peixes navalhados. Também gostava das listas azuis, amarelas e purpúreas dos atuns e do espanto eléctrico dos agulhões de crina larga. Saía às três e seguia a viela que acompanhava a linha urbana até aos bares. A trepidação do comboio fazia tremer as agulhas da ruela. As agulhas rebrilhavam ao sol. O sangue era mais evidente quando a linha férrea se refreava; o sangue, o mijo, a merda, os preservativos mal atados, repletos de esporra morta. As paredes tinham desistido, descascando-se em fatias leprosas de tinta sobreposta que caiam em talhas sobre os corpos. Havia dois tipos de corpos: os retesados e os laxos. H. passava por eles, bebendo vinho de pacote e não havia nada que o separasse daqueles corpos sem gente. Talvez o tempo, mas o tempo não existe. Mas conta-se e transforma-se em dinheiro e em objectos e em viagens e em todas essas merdas de que ninguém precisa. Que Náusea. H. via os sessenta minutos de cada hora pautados pelo marasmo existencial do quotidiano, etc. tic tac tic tac tic... via-os rolar no momento interminável de uma roda dentada. Aos vinte e oito anos, H. tinha completado a dissociação com a juventude radical de sonhos intrépidos. Quem sou eu? perguntava-se, mas abafava o palrar daquilo que considerava serem as vozes atrevidas da loucura; a voz voltava quem sou eu? já não sou quem fui... quem sou eu? seria mais fácil de explicar se me tivessem parido uma segunda vez; eu não sou quem pariste, mãe; talvez não me perdoes por isto ou talvez eu não me perdoe e, para ti, isto seja um tanto indiferente como te é indiferente se hoje não lavo a louça, não lavo os dentes, não visto um pijama para dormir; mas se ainda sou teu filho e se já não sou quem pariste, mãe, inteira-te que pariste dois filhos distintos, de um só parto; quem sou eu? E H. contava as horas que eram inúteis, um acumular enfadonho e letal de pequenos tempos sem vida, ao fim dos quais termina, em nada, a derradeira existência. E isto significa…? Um, dois, três, uma aranha vermelha no parapeito da janela que dava para a Rua Bel Monte tricotava os polígonos de uma teia nova e inútil para a continuidade do universo. Ou será que pode residir naquela aranha (e nos polígonos da sua teia) um dos alicerces do tempo? H. punha-se a pensar que tudo aquilo era tão certo e tão absurdo; como tudo e como nada; e estes pensamentos vinham em turbilhão; eram vírus insidiosos e traziam-lhe a agonia da existência numa torrente semelhante ao trânsito contínuo da Rua Bel Monte. Sentia-se febril e dava-se, em êxtase, à rua e os ares da rua traziam-lhe um alívio momentâneo. Onde está o meu propósito? Que farsa total, a procura de um propósito.
E por falar em propósito, H. já não via salvação no consumo. Não via redenção na publicidade. A família feliz que se juntava à mesa em torno daquela marca de tortellini já lhe parecia bem menos feliz. H. não chegara a perceber se a família era feliz à conta do tortellini ou se era o tortellini que era a receita para a felicidade italiana da família. H. entendia agora o engodo, apesar das imagens do Natal-Cola lhe serem uma alcofa de aconchego na memória. Eles mentiram-te e tu gostaste, isso faz de ti um Procter&Gamble’s-Pampers-proto-ignorante? Tu queres sonhar e eles oferecem-te os sonhos através da janela mágica; sim, ainda guardo o conforto da mãe, pai, filho, filha, sorrisos, sim, sorrisos, passa-me o Ketchup, pai, que delícia, mãe, não comas a minha fatia de tarte, Ana, risos, risos, risos de amor… sim, aquilo a que chamamos amor… será aquilo amor? tem vendido tudo quanto conheço, esse tal amor; quantas pessoas amam bem? e de quanta felicidade precisamos na veia depois da mais recente dose de felicidade? Deste desejo não se alimenta a revolução. Mas não há revolução sem alma, filho da puta. E antes vias a beleza… onde foste deixar os olhos? H. olhava para um horizonte: um retalho de névoa cobria o semblante de uma palmeira e um carvalho. Sim, eu via beleza nisto mas devo ter perdido o olhar… onde via beleza, vejo agora propriedade privada e eu não devia ser assim porque as copas e os troncos e as raízes que seguram as copas e os troncos são da beleza e que importam os muros? Um cretino; sinto-me um cretino e deixei-me toldar pelo ódio cínico à estupidez parceladora “isto p’ra mim, isto p’ra mim, isto p’ra ti, isto p’ra mim; não? não? eu paguei, eu paguei e bem e cá está, cá está, olha bem, assinatura oficial e escritura e a câmara municipal e as testemunhas e o notário, pois o mérito… se ao menos te tivesses esforçado mais um bocadinho… não se faz, não se faz sempre o que se quer e há muito quem queira viver à custa dos outros e olha que é bem mais difícil mandar e a responsabilidade, etc.” e deixei de dialogar com aquelas copas e com as paredes quentes e agora só concebia realmente a liberdade dos pássaros e de alguns gatos e de todos os ratos e dos insectos e dos vermes parasitas que, sem mácula, destroem a ordem opressora dos cifrões. Não sejas cretino e olha-os nos olhos. Os aromas deles (dos paraísos) e a refracção do sol sobre as folhas e o restolhar dos bichos sem consciência (livres), livres de tudo “ah mas querias ser bicho?” Sim, meu cretino. Eu queria ser bicho e ter fome de bicho e ter fomes de bicho pois bastavam-me quinze minutos naquela copa e a vida teria valido a pena e eu tenho tantos quinze minutos e outros e mais quinze ainda e desejo-os mortos, empilhados e que ardam na pira do tempo porque não consigo tocar-lhes; nem a um minuto dos quinze; e quinze bastariam, na copa do carvalho ou da palmeira ou encostado (verdadeiramente encostado) ao muro do sol quente.
E depois o resto, o amor. Os anos corriam e o amor era lentamente relegado ao imaginário quase religioso, à casa da utopia. Nos dias maus, o amor tornava-se disfórico, cunhado por Hollywood depois desta ter rebentado o seu esqueleto e músculos originais e ter erigido um néon faiscante que gritava em pulsos de luz AMOR.AMOR.AMOR.AMOR. H. conhecia o amor doméstico. Tinha-lhe visto o rosto enfadado, desvivo de cansaço. Ama o próximo como a ti mesmo era um mote perverso. Como a ti mesmo? H. caía num abismo. Nem o que detesto amo tão pouco. E a culpa é minha; é que ninguém me prometeu que, um dia, seria bom para sempre. Ninguém mo disse. E eu devia tê-lo visto (quem me dera nunca…) Mãe, Pai, quando vamos ser felizes? Olhem, olhem! Desenhei um plano e assim seremos objectivamente felizes. Olhem! Pai, Mãe, está aqui! Está certo! Tenho a certeza ABSOLUTA de que está certo! Sorrisos. Sorrisos. Sorrisos pálidos que atomizam a inocência. Tu, estou colado a ti. Colado irremediavelmente a ti e temos um filho, não tens vergonha, não tens vergonha? Três pratos partidos no chão da cozinha. Silêncio e tempestade, tempestade. Se não são felizes, porque não…? Cresce e aparece, pá! Cresce e aparece, ouviste? Quatro olhos sobre H. Os dele, uma tempestade incrédula. O que significa isto? A mãe chorava no chão; as pernas de lado brotavam-lhe da saia de veludo; amanhã seria dia de tropecei, sou tão distraída outra vez. Eu amo-te, pá! Eu amo-te! Eu faço isto por AMOR, entendes? Claro que não entendes, sua cabra. Querias ir trabalhar, era? Querias ir trabalhar e mostrar as pernas ao mundo, sua puta? Eu amo-te, sua puta! Depois o reboliço de braços e uma reconciliação muda. A porta do quarto fechava-se e H. perdia-se num sono roubado a outra vida, a outra casa. Não. Não pode ser. Tem que haver mais do que isto. Isto não. Por aqui, não. Isto é assim, sabes? Mas eu vi… o que viste não existe. É uma casa sem casa. Dinamite entre os tijolos das paredes e um estrondo matou o amor.