ERVA E DÁLIAS NA LATRINA (CAPÍTULO I, PALAVRAS 1510-2067)

Serayva levantara os olhos do guardanapo, despertado por uma torrente de aplausos que incendiavam, gasolina sobre fogo, as palavras bestialmente capazes de L. L. James. Ainda assarapantado, Serayva juntara-se aos aplausos. Mas as suas enormes mãos ribombavam como se rebentassem foguetes e, ao momento da última palma (que ele batera sozinho), a sala inteira foi pousar os olhos vazios sobre o velho. O que eu detesto olhos vazios, dizia H. e a mulher cruzou as pernas para o lado dele. Devem ser os últimos a esvaziarem-se e depois é difícil voltar a enchê-los do humor brilhante que nunca deserta os olhos dos doidos e das crianças e dos bêbedos e dos cabrões dos poetas. Só dos poetas? Só dos poetas. Os cronistas, os novelistas e os romancistas não são senão poetas fracassados e nem me ponhas a falar dos guionistas. Falas sempre assim? Não, nunca. Só quando penso numa personagem interessante e com ideações suicidas. Estás a escrever? Não, porra, não! E julgo que o teu marido me roubou essa centelha de tesão que me acordava à noite e me fazia correr à máquina - deu um gole profundo, sôfrego - para me vir sobre as páginas só que raramente me venho, percebes? Ele não é bom nem mau. Nunca me passou pela cabeça concordar com essa descrição de L. L. James e agora cá estou, de coração partido. Nunca mais me vou conseguir esporrar sobre uma página, sabes? Vocês são tão parecidos, como se ele tivesse desbebido e desfodido os últimos vinte e tal anos e agora regressasse como o conheci, na altura em que o conheci. Queres subir? Miúdo, eu sou casada com aquele homem. Tens medo de não querer descer? Tenho medo que te apaixones, miúdo. Outra vez? Claro, os homens têm o coração do tamanho de um bordel. Pensei que eu era um miúdo. Então estás apaixonado? É sempre ela. Que bonito… Bonito, o caralho - H. levantou o copo e pediu outro. Falas sempre assim? Já disse que não. Ainda é a personagem? Sim, trouxe-a para viver na minha vez. Talvez queira foder a tua personagem. Sim, mas isso teria algo de esquizofrénico. Ele é bom? Não. Quero dizer, tem-no grande e bonito mas não é uma grande pessoa. Riram-se (ou sorriram). Quem é ela? Pensei que querias a personagem, esse gajo não se apaixona nem sabe o que é isso do amor. Tu sabes? Sei e não precisei de estar no Banquete nem de receber lições de moral de nenhuma Diotima nem do namorado dela. O Sócrates era namorado da Diotima? Talvez, ou talvez quisesse descortinar-lhe a toga. Como é ela? É segredo.. um segredo muito mal guardado, mas faço o que posso. Serve-me uma fatia, só uma. Não saberia onde fatiar e talvez nem seja assim tão interessante.. ela, quero dizer.. porque o que sinto é infinitamente interessante mais o cabelo cor de carro esmagado numa sucata, olhos de luz, corpo constelado e um caminhar vagaroso como quando os miúdos vão aprender a conduzir para um parque de estacionamento deserto, numa noite de verão… e eu detesto corpos nus…quero dizer, não os detesto mas acho-lhes infinitamente mais piada quando estão vestidos e ocultam o prazer latente e assim… mas a ela imagino-a sempre nua e é perfeita, sabes…? Sim, suponho que sei, ou que soube, sei lá.

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Erva e Dálias na latrina (Capítulo I, palavras 1023-1509)

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Erva e dálias na latrina - fim do capítulo i (palavras 2068-2446)