ERVA E DÁLIAS NA LATRINA (CAPÍTULO I, PALAVRAS 437-1022)

Lá fora, a sarjeta fumegava sobre uma banca de jornais. Dos recantos em que se recostavam as mulheres de sorriso triste, exalava-se um hálito a mijo e maresia e a cidade, àquela hora, já gritava e gemia de fúria. O céu sangrava sem parar. As copas das palmeiras esbracejavam à corrente ocidental do oceano, desmembrando-se em folhagens antigas e devolvendo os pássaros à sincronia dos bandos. Serayva KO ao segundo assalto, gritava a manchete adejante à súbita exalação galopante do metro. H. corria as linhas do jornal revivendo, momento a momento, o curto combate da noite anterior. Compadecia-se pelo velho Serayva mas também por si. E calcorreava, linha a linha, a infalível memória descritiva de L. L. James, cronista de palavras maiores, especializado nas artes performativas do pugilismo. Ler a crónica de L. L. James era adivinhá-lo a apaixonar-se, uma e outra vez, pelos golpes, pelos jogos de pernas, pelos olhares que enganam, que dizem derrota no momento que antecede o contragolpe, pelos sulcos suados e sangrados sob o sobrolho. Era saber-lhe as garrafas vazias e sentir-lhe a doçura dos cigarros Blue Cherry, um após o outro, desfazendo-se languidamente num canto da boca, pressurosamente sorvidos ao cliqueclaquear do teclado. Ler L. L. James era quase melhor que estar no ringue e as suas palavras marcavam o gado da indústria qual ferro incandescente. H. havia conhecido L. L. James numa festa aborrecidíssima, à conta da inauguração duma das escolas de pugilismo de Chad Fields, um britânico muito cheio de si e da sua velha glória. Encontrara-o sentado e com o olhar posto numa mulher de vestido púrpura que dançava sozinha a uns três ou quatro metros dali. Aquela puta dança para mim. Vertera metade do whisky ao tentar servir-se e engolira a dose num só trago. E tu, quantas putas dançam para ti? H. ia dizer-lhe que as putas dele dançavam no ringue mas permaneceu mudo. A mulher continuava a dançar sozinha, música após música, envolvendo-se nos próprios braços, estendendo os dedos sobre o veludo do vestido, olhando descaradamente para L. L. James que agora fumava em mangas de camisa, de gravata desapertada. Entre dentes, lá ia dizendo Aquela puta dança para mim, enquanto esvaziava a garrafa de líquido âmbar. Estou a arder, pá disse então a H. Mandou-o sentar e perguntou-lhe por Serayva mas não esperou pela resposta. Esse cabrão devia ter pendurado as luvas há duas temporadas, quando deixou o fedelho do Tom Kront agarrado aos tomates. Foda-se, ninguém quer ver um tipo feio e velho como uma uva-passa em cima de um ringue. Epá, se gostas… ou mesmo que não gostes… se respeitas minimamente o teu amigo e a tua profissão, arranja-lhe uma cadeira-de-baloiço, um cabide e uma porra duma gaja qualquer e manda-o afastar-se do ringue. Ou talvez aches que ainda consegues ordenhar o gajo durante mais tempo… H. serviu-se das últimas gotas da garrafa. E depois há a questão do estilo. Epá, o que eu detesto o estilo do teu amigo. O estilo é a resposta para tudo, sabias? O velho não se mexe! Caem-lhe os golpes em cima e o gajo é um autêntico saco de pancada, sempre à espera que o adversário se canse de lhe bater para, por fim, retorquir com o jab desajeitado e depois aquele gancho de chumbo sobre a têmpora. Esses gajos têm que ter estilo, sabias? A alegria, o tesão de desfigurar e ser desfigurado. E o jogo de pés e de pernas tem que ser sensual; afinal é uma dança de putas.

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