Esta é sobre vilania

Agora que as características das pessoas de bem estão balizadas pelas mãos da (re)emergente extrema direita, resta-nos decompor o conceito de vilão de excelência. Surge um desconforto latente quando se está perante um vilão de circunstância, cujos actos são previsíveis, pouco originais e fáceis de decifrar. Ora, este desconforto dever-se-á bem mais à condescendência do vilão, que considera que o vilanizado é susceptível a truques indolentes e a jogos pueris, do que ao acto vil. Neste exercício deixemos, pela elegância, a vilania de origem patológica de parte já que, nestes casos, o malfeitor não é necessariamente imputável pelos seus actos e também por não causar o mesmo sentimento de desconforto moral que aquele infligido pela condescendência cognitiva do vilão amador. O vilão de excelência é arguto e terá até características de verdadeiro estadista. Nas suas acções vis, o seu objecto não se sente subjugado. Antes, como definiu Zaratustra pelas mãos de Nietzsche, se vê até impelido pela sua vontade a cooperar e zelar pelos interesses do vilão como se dos seus próprios se tratassem. Estes axiomas não são mais ou menos verdadeiros no contexto académico e universitário. Porém, talvez pelo estatuto de que estas casas do saber dispunham na sociedade civil, acompanhar a sua decrepitude, vê-las a definhar na polpa amolecida da sua massa crítica, oferece o pior dos fins de boca: embaraço por causa alheia.

Diz quem sabe da poda que existirá uma correlação negativa entre a vilania e o pensamento crítico, estruturado e informado. Sócrates estabelecia o conhecimento como o único representante completo do bem e contrapunha a ignorância como corpo do mal.

No discurso Knowledge its Own End (1852), John Henry Newman convidou os alunos da Universidade Católica Irlandesa de Dublin a pensarem a Universidade como instituição de referência para os estudantes mas também para os estudos que faculta. De modo tácito, tendemos a aceitar o conhecimento científico como objecto fundamental mas também como entidade geradora de Alma, orientando-se sob esta égide. Assim, os estudos, tal como os estudantes, usufruem de um estatuto duplo de usufrutuários e de substratos da Universidade. Esta seria, de acordo com Newman, a ideia primordial de Universidade: uma instituição livre, pluralista, equitativa, ponderada e sapiente, tendo o avanço científico como pedra basilar. Quanto ao conhecimento científico, este é retratado como uma molécula complexa e coesa, de ligações atómicas desenhadas pelas mãos plurais de um Criador. Apesar do catolicismo pairar sobre os pensamentos de Newman, este nunca é suficiente para os assombrar. Aliás, de forma coerente com a tendência actual, Newman acaba por confirmar a crescente obsolescência da inclusão do retalho teológico no manto científico. Ao admitir que os vários núcleos de conhecimento se agregam num equilíbrio harmonioso, corrigindo-se e completando-se, Newman acaba por descrever a cinética própria da natureza que não necessita de intervenção externa para se perpetuar, bastando-lhe pouco (ou nada) mais do que a termodinâmica fundamental. Apoiando-se em Cícero, indica-nos que o conhecimento adquirido e transmitido, tendo nas Universidades o seu berço, deve ser um fim em si mesmo.

É que as Universidades têm sido geridas mediante um imperativo hipotético de produtividade, simultaneamente obedecendo a um sistema competitivo cujas regras são estabelecidas por métricas no mínimo dúbias, premiando o poder estabelecido, os docentes que enriquecem o currículo graças ao trabalho precário dos investigadores que, no melhor dos casos, estão contratados a termo incerto. Também neste ponto, Newman se demonstrou indisponível para compactuar com a adaptação do princípio da divisão do trabalho às Universidades, recusando que estas sejam reféns das métricas de eficiência e rapidez, como se um sistema industrial se tratassem. É que a qualidade científica gerada tem sido quantificada pelo número de artigos científicos publicados, pelo número de patentes submetidas, pelo número de projectos aprovados, pelo número, pelo número, pelo número. Esta vilania é relativamente fácil de desmascarar e, por isso mesmo, é uma vilania ignóbil, preguiçosa, condescendente, ou seja, de muito má qualidade. Tanto que, em março de 2024, a Universidade de Zurique comunicou que iria abandonar o sistema de ranking publicado pela Times Higher Education magazine (detida pela Inflexion Private Equity), por não concordar com o sistema de classificação que contabiliza o número de publicações em número absoluto ao invés de tomar em consideração o seu impacto e qualidade científica.

A moribundez da credibilidade académica é um acto suicida programado, uma apoptose. Não há Universidade que não se vanglorie das íntimas ligações ao tecido empresarial, apresentando-se subjugada aos interesses privados, criando-lhes conhecimento barato ou gratuito e formando-lhes os futuros trabalhadores. Os alunos usam as Universidades como mera formalidade, recusando-se (com razão) a compactuar com a sonsa virtude académica e científica. Este modo de pensar, agir e sentir a Universidade tem o efeito insidioso de fazer definhar o sentido crítico, sendo um dos grandes responsáveis pela criação de gerações cada vez mais desconcertadas com o estado social. Não existe comunidade se cada um dos seus membros se depara constantemente com enormes dificuldades em encontrar pontos de apoio, coesão e mutualidade de interesses. Desengane-se quem ache que não existe nexo de causalidade entre a apologia ao indivíduo (em contraposição com o sentido de comunidade) e a ascensão de ideais políticos altamente polarizados na Europa. É que o fascismo, antes de impor pela força o fim da livre expressão, tem o seu gérmen na senescência voluntária do pensamento livre. E é claro que a liberdade de pensamento, individual ou colectiva, vê os seus horizontes expandidos a par e passo com o desenvolvimento da profundidade e abrangência intelectual de cada indivíduo.

A vida será sempre menos desumana se, dentro de uma sociedade, o indivíduo encontrar oportunidade e capacidade de pensar e agir, dizia Simone Weil. É para aprender a pensar e, de acordo com um pensamento bem fundamentado, conseguir agir em propriedade, que um aluno procura a Universidade. E esta, vilã por necessidade, perdeu o norte porque se quis esquecer dos seus objectos fundamentais: o aluno e o conhecimento.

In Bardino, edição de Novembro de 2024

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