ERVA E DÁLIAS NA LATRINA, CAPÍTULO VII, PALAVRAS 15816-16873

Junto à baía, os marinheiros desatavam os nós dos pontões. As famílias passeavam-se junto à água que faiscava um sol dividido em mil sóis. Um navio cruzeiro fazia soar um ronco e a ponte móvel do porto rasgava o tabuleiro em duas metades. A erva no bolso de H. chegava para enrolar um bom tranquilo. Fora assim que o velho lhes chamara, tranquilos, quando, depois de um treino nocturno, partilharam 0.5 g de cannabis enrolado em papel de arroz. Acendeu o tranquilo e ficou a olhar para a névoa de erva e a imaginar que podiam ser claras em castelo que, como as coisas leves, caíam sem pressa no mergulho da estratosfera. Claras em castelo pensava; e voltava a ser invadido pelas palavras que lhe saíam da boca sem que as dissesse claras em castelo e voltavam a entrar-lhe pelos ouvidos. As claras em castelo rodopiavam-lhe dentro dos miolos; festejavam e tocavam trompete e marimbas e havia uma clara, claríssima, de braços nus debaixo dum véu de branco acetinado, que percutia flutes com pauzinhos chineses. A erva morria a dormir. O mar soprava ventos cansados de sal sobre a erva incandescente e os pedaços irregulares de sonhos falados acordavam em sobressalto nas inspirações travadas nos pulmões. Sussurravam claras em castelo e depois as palavras rodopiavam. Espirais como escadas subiam o castelo perclaro. Espirais de palavras claras em castelo faziam-se em caminhos de algodão e H. subia-os a passos lentos. Soprar para dentro……….soprar para fora………..soprar para dentro ; gostava de poder coçar os pulmões por dentro hahahaha e agora tenho os olhos secos e quero comer umas colheradas destas claras em castelo e que me importa se o velho não quer combater? eu nem sei se ele não quer ou se hoje não estava para pensar naquilo; talvez não queira combater mais; nunca mais; e que tenho eu a dizer? pois, nada, combate ao combatente, corpo ao dono do corpo, dos músculos do corpo e da mente que carrega o corpo e os músculos do corpo; tenho os olhos vermelhos, consigo vê-los vermelhos sem os estar a ver; vida solitária, a dos olhos; servem para ver mas não se vêem a não ser ao espelho; não fiquem tristes, olhos; eu vou criar uma imagem mental vossa, será quase como se conseguissem olhar-se olhos nos olhos, verde no verde, esclera é aquela parte branca que parece a clara de um ovo estrelado e o verde seria a gema, uma gema podre que esverdeou e um enorme ovo de mosca mesmo no centro negro; vejam, olhos, vejam!, o verde é verde e o preto é preto como uma mosca enorme ainda dentro do ovo e a esclera é a parte clara, claras em castelo, claras em castelo, hmmmm, claras em castelo e açúcar em pó. Hoje penhorei o couro por ti, velho. Eu tentei, velho. Eu sei, eu sei, tu DÁS o couro por mim e por ti, em cima do ringue e percebo que tudo te doa nos ossos velhos e nos braços velhos e nos olhos velhos, velhos, velhos; velho, se te falhar, será falhar em tudo e eu já falhei em tudo uma vez ou mais quando a mão dele estalava na cara da minha mãe e a minha mãe era uma mulher tão bonita, velho; ainda mais bonita quando chorava, não me importo de o dizer; e o meu pai era um homem bonito apesar de bêbedo e tuberculoso e de ser um grande filho da puta com aquela fivela presa ao cinto de cabedal e eu falhei quando disse que o matava EU MATO-TE quando ele batia nela e em mim e tenho a medalha no rabo, hehehe uma medalha no rabo, cicatrizes são medalhas no rabo; não o matei; ele matou-se e matou-o a tuberculose e a bebida matou-o ainda vivo e mesmo morto ainda me vem bater mas pelo menos à minha mãe já não bate porque ela está morta e enterrada no cemitério de são joluraz onde as raízes das nogueiras-do-japão desenterram os mortos como se lhes dissessem ‘toca a acordar, preguiçosos, toca a acordar, levantem-se e deixem-me beber em paz’.

Não planeava regressar já a casa mas deu por si já a meio caminho. Quis contrariar o destino em piloto-automático mas o primeiro boteco estava fechado. No segundo local de repasto, as mesas estavam todas ocupadas, a maioria por casais apaixonados e duas ou três famílias jovens com crianças de colo que gritavam por leite. Quero bebê-lo a acompanhar uma tarte de pêra, lembrou-se. Havia outra boa taberna e até implicava um desvio substancial do caminho. Os guarda-sóis da esplanada fechavam-se àquela hora em que já não havia sol para guardar. Daquele que pinta os lábios; Ok, chefe e H. foi sentar-se numa mesa de dois. Em cada mesa dormia um cardápio com a ementa do dia impressa sobre um quadro de Monet. Azeitonas, sim? Pretas ou recheadas? Pretas. Ok, chefe. Ei, miúdo! A voz não era desconhecida nem familiar e vinha do outro canto da sala. Ei, miúdo, como está o teu velho? L. L. James levanta-lhe o copo e tinha um sorriso de vinho estampado na boca. Sempre és tu, miúdo? estava com dúvidas mas sempre és tu. Sim, senta-te. H. agitou o braço para o empregado de mesa vou para ali; Ok, chefe. Então? Uau. Um grande combate, hã? Um grandessíssimo combate; o teu velho tem-nos no sítio e tu também, miúdo, isso tenho que reconhecer; e logo na Top Rank e com o Igor Salamante, hã?! Sim, é verdade; o velho mostrou que… Mostrou um caralho murcho e encaracolado numa lata de pickles, miúdo… TU mostraste que dás o olho por ele e isso é… deu um gole sôfrego no copo de vinho coisa de homem, coisa de homem a sério. Pois, não sei se… Vai-te foder, miúdo. Amanhã vou escrever sobre ti e vou escrever coisas boas; coisas boas à minha maneira, está claro. Não me desiludas, miúdo; o que escrevo é ouro e fico muito, muito mal disposto quando o meu ouro afinal é chumbo ou uma lata de merda. Bota abaixo! Beberam os dois e H. podia jurar que L. L. James lhe sorrira. Tudo estava quase bem e foi quase pena que, chegado a casa, H. fosse dar com Edgar armado de toda a sua enorme intumescência, cavalgando o belíssimo rabo de Alice.

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